Viver na Amazônia é sinônimo de dividir espaço com as cobras. É comum encontrá-las durante passeios nos parques, às margens das águas ou até mesmo se esgueirando em nossas casas. Também é comum que esses encontros acabem em acidentes.
De acordo com o último levantamento divulgado pela Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas – Drª Rosemary Costa Pinto (FVS-RCP), em 2022 houve 1.573 casos envolvendo picadas de serpentes. Em 2021, foram mais de 2 mil.
Apesar de estarmos cercados por elas, pouco sabemos a respeito, como por exemplo o fato de os rins serem os primeiros órgãos afetados pelo veneno, ou que a mordidas de cobras filhotes são mais perigosas que de cobras adultas, ou que a espécie mais envolvida nas eventualidades é a surucucu.
Igor Yuri Fernandes, diretor e fundador do Projeto Suaçuboia, e doutorando no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), conversou com o Diário da Capital para esclarecer alguns mistérios sobre o assunto.
DC: O que fazer após ser mordido por uma cobra? O que não fazer?
IGOR: O aconselhado é não tomar nenhum tipo de medicamento, fazer cortes no local da picada, amarrar de modo a estancar o sangue de circular na região (torniquete). Deve-se procurar a unidade de saúde mais próxima ou ir direto a algum hospital que possua o soro antiofídico para tratamento correto do acidente, se for necessário, já que muitas espécies de cobras confundidas com peçonhentas não apresentam risco ao ser humano (ressalto que somente um especialista pode dizer a diferença entre elas). Se possível, tirar uma foto do animal com o celular para facilitar a identificação do animal (não é necessário levar a cobra ao hospital) e ingerir água para manter os rins funcionando em caso de envenenamento, permitindo a pessoa urinar, tendo em vista que os rins são os primeiros órgãos a serem afetados diretamente já que atuam como “filtros do sangue”.
DC: Como agir ao deparar-se com o animal?
IGOR: Admire, fotografe a uma distância segura e se ela estiver em seu caminho faça um contorno tranquilamente que o animal não vai apresentar risco a você e nem a quem estiver junto, e lembre-se de avisar quem mais estiver no caminho sobre a presença do animal, ele vai acabar indo embora sozinho pois nos enxerga como predadores ou algo que poderá lhe causar injurias. Caso a cobra esteja na sua casa, mantenha a calma, retire animais e crianças do cômodo e ligue para o corpo de bombeiros que eles farão a retirada do animal em segurança.
DC: Os mitos sobre picada de cobra ainda são uma realidade? (Chupar o local da picada, usar garrote, colocar ervas sobre a ferida, etc).
IGOR: Vivemos em uma sociedade construída por meio de crendices e coisas que aprendemos desde crianças, e nelas estão alguns mitos sobre possíveis curas ou remoção de peçonha. Me deparo diariamente com diferentes histórias sobre como tratar uma picada de cobras em diferentes regiões da Amazônia, indo desde ter que “comer a cobra viva para curar sua mordida”, urinar no local da picada, colocar borra de café, ou a utilização de uma solução chamada “Específico Pessoa” e vendida a valores de R$ 40, que nada mais é que um coquetel de ervas desconhecidas juntamente com álcool, cuja promessa é curar qualquer tipo de picada de cobra, escorpião, aranha ou inseto peçonhento. Para mim, essa solução é um dos maiores riscos que as pessoas têm, pois muitas dessas ervas podem ser tóxicas ou sua combinação pode se tornar um composto tóxico, podendo levar até mesmo a morte da pessoa, que caso ocorra, a culpa é sempre transferida à “cobra que possuía um veneno muito potente”.
DC: O tratamento é realizado com soro antiofídico, esse medicamento tem que ser administrado em quanto tempo?
IGOR: O quanto antes. A determinação de quantas ampolas e por quanto tempo o tratamento deve ser feito é responsabilidade da equipe médica que irá avaliar a evolução do quadro clínico do acidente.
DC: A população do interior tem dificuldade em logística de tudo, isso acontece também com o soro? Existe um projeto para colocar o medicamento mais próximo dessas pessoas?
IGOR: Existem iniciativas do Governo Federal para ampliar a distribuição do soro em regiões do interior, baseadas na quantidade de casos reportados de acidentes com cobras, e na disponibilidade de uma unidade de saúde para armazenar e fazer a utilização do soro por profissionais qualificados. Com o sistema de reporte de casos sendo atualizado constantemente, acredito que a distribuição pode ser maior e mais eficaz principalmente para a região amazônica.
DC: Qual perfil das pessoas que mais sofrem com esses acidentes aqui na região?
IGOR: Normalmente são homens adultos que trabalham em regiões rurais ou dentro da floresta (seja com extração de frutos ou madeira, entre outras atividades).
DC: E a incidência é mais comum com qual espécie?
IGOR: Se falarmos de espécies peçonhentas, a jararaca-do-norte, ou surucucu (Bothrops atrox) como é chamada em algumas regiões, é responsável pela maior quantidade dos acidentes registrados.
DC: Qual época do ano tem mais frequência de casos?
IGOR: Estação chuvosa entre outubro e março são os meses de reprodução e maior disponibilidade de presas para as espécies de cobras da região, e consequentemente o número de casos é mais elevado.
DC: Quem sofre de alguma doença crônica está mais vulnerável aos efeitos do veneno?
IGOR: Assim como diversas doenças, comorbidades podem agravar os casos de envenenamento por animais peçonhentos, e desta forma o cuidado e urgência devem ser maiores à levar a pessoa para o pronto atendimento.
DC: O Amazonas está preparado para lidar com esse tipo de acidente? Há insumos o suficiente?
IGOR: Essa é uma pergunta complexa. Estar preparado é em relação aos profissionais de saúde? À quantidade de unidades de atendimento? Quantidade de soro antiofídico? Acho que os profissionais da saúde sempre fazem o possível para atender muitas vezes sobrecarregados a demanda de acidentes com maestria. Em época de maior número de acidentes pode ocorrer a falta de soro antiofídico, mas existem formas de mediar a ação do veneno até a chegada de mais insumos, os casos de morte hoje em dia são bem menores graças ao avanço dos procedimentos médicos e estudos, tanto com veneno quanto com formas alternativas de tratamento dos acidentes.
DC: Há diferença entre a mordida/veneno de uma cobra mais jovem para uma cobra adulta?
IGOR: Eu gosto da analogia entre uma criança de 1 ou 2 anos com uma garrafa de água. Se você pedir para criança derramar só um pouquinho, ela, ainda sem controle motor pleno, vai derramar possivelmente todo o líquido da garrafa transbordando o copo, coisa que um adulto tende a não fazer. As cobras são bem semelhantes, onde os filhotes ainda estão aprendendo a controlar a quantidade de veneno que injetam e acabam em uma mordida inoculando todo veneno que possuem. Já cobras adultas podem controlar essa quantidade de veneno ou até nem o injetar, o que chamamos de “bote seco”.
SUAÇUBOIA
Idealizado por Igor, o Projeto Suaçuboia tem como objetivo documentar e divulgar informações sobre as cobras para a população. Para acompanhar, basta seguir o perfil da iniciativa no Instagram.