“É impressionante olhar pra trás e ver quanta gente querida a gente perdeu, de quanto a gente foi machucado e marcado por essa pandemia”. Esse é o relato de Arine Cruz Terço, jornalista que perdeu o irmão de 32 anos para a Covid-19 durante a crise de oxigênio no Amazonas. Cinco anos depois, são estimadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) cerca de 20 milhões de vítimas da pandemia no mundo inteiro.

A pandemia de Covid-19 deixou um rastro de dor e perdas irreparáveis. O caos nos hospitais, a falta de insumos, as informações desencontradas e a desinformação marcaram esse período trágico.
Hoje, familiares que perderam entes queridos relembram os momentos difíceis e refletem sobre as cicatrizes deixadas pela maior crise sanitária e humanitária vivida no último século.
Aflição e perdas
O servidor público Steven Castro Conte viveu de perto a devastação causada pela Covid-19. Ele perdeu três familiares para a doença: seu tio Francisco Carlos Conte, de 69 anos, sua prima Ingrid Sobreira Conte, de 59 anos, e seu tio-avô João Teixeira de Castro, de 76 anos.
Steven recorda a sensação de incerteza que tomou conta do mundo no início da pandemia.
“Acho que o que mais causava apreensão no começo eram as informações escassas, desencontradas, imprecisas. Ao mesmo tempo, o vírus avançava rápido, e a gente via as grandes cidades parando, até que chegou ao Brasil, a Manaus, ao meu bairro, ao meu prédio”, relembra.

A batalha contra o vírus começou dentro da própria casa. Steven conseguiu proteger seus pais por um tempo, mas, quando seu pai começou a apresentar sintomas, percebeu que a luta contra a doença seria inevitável. “Ele chegou a desmaiar em casa e recebeu atendimento médico, mas pôde continuar no isolamento. Dois dias depois, eu perdi completamente o olfato. Como não havia exames disponíveis, tive certeza de que estava com Covid e fiquei isolado no meu quarto por 14 dias”, conta.
Depois da recuperação, ele e a mãe passaram a ajudar outras pessoas, emprestando oxímetros e oferecendo apoio. No entanto, a pandemia continuava fazendo vítimas. Em maio de 2020, seu tio adoeceu em Boa Vista e precisou ser transferido para um hospital de campanha em Manaus. “Mesmo tendo recebido todos os cuidados disponíveis, em sete dias ele faleceu.”
A segunda onda, no início de 2021, trouxe ainda mais sofrimento. “A dor de perder tanta gente foi acompanhada pela frustração de ver o descaso das autoridades. Enquanto no governo federal divulgavam tratamentos sem eficácia, no estadual havia escândalos como a compra de respiradores em loja de vinhos.”
Solidariedade na crise de oxigênio
Diante da tragédia e da falta de estrutura nos hospitais, Steven decidiu se voluntariar para levar insumos e cilindros de oxigênio a unidades de saúde de Manaus. “Lembro de uma única noite em que visitei quatro hospitais e, em outro dia, fui até um hospital improvisado no Parque das Tribos para atender a população indígena”, recorda.

O impacto emocional da pandemia foi duradouro. “Nos meses que se seguiram, finalmente chegou minha vez de me vacinar, o que trouxe um pouco de alívio. Mas toda essa montanha-russa emocional culminou em um diagnóstico de depressão, que exigiu três anos de tratamento. Até hoje faço terapia”, concluiu Steven.
“Eu nunca conheci uma vida sem ele até 2021”
A jornalista Arine Terço também viveu o luto durante a pandemia. Seu irmão, Ageu Cruz Terço, bancário, morreu aos 32 anos, no dia 21 de janeiro de 2021, no auge da crise do oxigênio no Amazonas. Ele deixou dois filhos.
“Até então, ninguém tão próximo de nós havia adoecido. A gente sentia a pandemia como humanidade, mas não tínhamos passado por isso dentro de casa”, conta Arine.
Ageu estava no município de Itapiranga, no interior do Amazonas, quando apresentou os primeiros sintomas. Internado no Hospital Miguel Batista de Oliveira, ele precisou de oxigênio e, com o risco de desabastecimento na cidade, foi transferido para o Hospital José Mendes, em Itacoatiara.

Naquele momento, o Amazonas vivia um dos momentos mais trágicos da pandemia. Os hospitais estavam lotados, o sistema de saúde entrou em colapso e a falta de oxigênio agravou o quadro de milhares de pacientes. Ageu foi um deles. “O hospital estava um caos. Era um desespero na enfermaria, e ele foi piorando até que, no dia 21 de janeiro, faleceu”, relembra a jornalista.
A dor da perda se tornou ainda mais difícil de lidar pela distância. “Minha mãe estava no interior, e a gente não conseguia se falar direito. […] Eu percebo que ela é quem mais sente porque eu acho que a mãe nunca cicatriza completamente. Para ela, foi um trauma enorme, porque ela ficou ao lado dele durante todo o tempo da internação, até o momento da morte.”
A ideia de buscar justiça chegou a ser cogitada, mas a família optou por não encarar esse processo. “Na época, pensamos em entrar com uma ação contra o Estado, mas percebemos que reviver tudo isso seria ainda mais doloroso para minha mãe.”
Cinco anos depois, Arine diz que a dor da ausência ainda é intensa. “O Ageu era um ano só mais velho do que eu. Eu nunca conheci uma vida sem ele até 2021. Ele era uma pessoa alegre, amorosa, brincalhona, resolvia tudo para todo mundo. O que mais machuca é a saudade”, emociona-se.
Ela lamenta que o tempo tenha feito muitas pessoas esquecerem a tragédia que assolou tantas famílias. “Hoje, parece que para quem não perdeu ninguém, a pandemia é apenas um fato histórico. O Covid virou algo como uma gripe mais forte. Mas, para nós que vivemos essa dor, olhar para trás é lembrar o quanto fomos machucados e marcados por essa pandemia.”
Cinco anos depois: esperança e as cicatrizes
Passados cinco anos, os reflexos da pandemia ainda são visíveis. As vacinas trouxeram esperança, mas não apagaram as marcas deixadas pelas perdas. O luto permanece na vida de milhares de famílias, e a saudade de quem se foi nunca será esquecida.
A luta contra a desinformação, o fortalecimento do sistema de saúde e o reconhecimento dos erros cometidos ao longo da crise são alguns dos desafios que seguem em pauta. Para aqueles que perderam entes queridos, a esperança é de que esse fato histórico jamais caia no esquecimento.