Recentemente foi divulgado o Anuário de Segurança Pública 2023, que mapeia a criminalidade no Brasil. O documento aponta o Amazonas como o terceiro estado mais violento do país. Apenas entre 2021 e 2022 o estado teve cerca de 3 mil mortes intencionais, entre homicídio, feminicídio, latrocínio, morte decorrente de intervenção militar e outros. Manaus também foi colocada como a terceira capital mais violenta.

Conforme o relatório, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, na escala subnacional o estado que ocupa o primeiro lugar é o Amapá, com taxa de Mortes Violentas Intencionais (MVI) de 50,6 por 100 mil habitantes, mais do que o dobro da média nacional. O segundo estado mais letal é a Bahia, com taxa de 47,1 por 100 mil. O Amazonas aparece com uma taxa de 38,8 por 100 mil. Na outra ponta, as unidades da federação com as menores taxas foram São Paulo, Santa Catarina e Distrito Federal.
Segundo a análise, o principal fator para os altos números é o aumento da atuação das duas maiores, e rivais, organizações criminosas de narcotráfico do país: PCC (Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV). As duas facções têm origem no Sudeste, mas ao longo dos anos 2000 se expandiram para as demais regiões e se fortaleceram no Norte. O Porto de Manaus aparece na lista dos 14 portos com mais apreensões de entorpecentes pela Receita Federal.

“Não é à toa, a região Norte passa de uma média de 3.300 MVI em 2011 para cerca de 8.000 em 2018 e continua com número de mortes violentas intencionais bem superiores à média nacional. A região, muito estratégica pela proximidade com os principais produtores de cocaína do mundo (Bolívia, Peru e Colômbia), mas também pela difícil fiscalização no território, permeado de rios e florestas, passou a ser disputada por diferentes grupos criminosos. Isso resultou no aliciamento de indígenas, quilombolas e ribeirinhos para o narcotráfico e no crescimento exponencial da violência nos territórios da floresta”, relata o documento, destacando ainda como fator para violência o avanço do desmatamento, garimpos ilegais e a intensificação de conflitos fundiários.

Ainda somos uma nação violenta e profundamente marcada pelas diferenças raciais, de gênero, geracionais e regionais que caracterizam quem são e onde vivem as vítimas da violência letal”, diz.
APENAS NÚMEROS
Fabio Candotti é Cientista Social, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e coordenador do coletivo de pesquisa ILHARGAS - Cidades, Políticas e Violências. Para ele, chegamos a essa situação porque não consideramos as vidas perdidas como dignas de luto.
“São números. Há quem acredite que a maioria tem responsabilidade pela própria morte e que são "bandidos". Será que alguém diria isso se fossem todas pessoas brancas, de classe alta? Ou nos escandalizamos e começamos refletir e a estudar a situação, ou a situação só tende a piorar. Pode ser que essa quantidade de mortes violentas diminua, mas ainda assim dificilmente sairemos da lista das 100 cidades grandes com maior taxa de homicídios do mundo”, reflete Candotti, que, em 2022, lançou um estudo sobre linchamentos que mostra uma proporção de casos por população muito alta em Manaus, a maior taxa já registrada na história do Brasil.

O professor também destaca a atuação das facções, mas, em sua análise, há muitos outros agentes que contribuem para essa violência.
“O Amazonas tem presença de facções como em qualquer lugar do país hoje. Mas as facções não são iguais em todo lugar. Veja as diferenças de comportamento de facções no Rio de Janeiro e em São Paulo. São dinâmicas de funcionamento completamente diferentes. Aqui não é diferente. Temos inclusive dinâmicas diferentes na capital, no interior e em contextos de fronteira. Agora, essa presença não quer dizer que as facções dominem sozinhas os mercados ilegais e os territórios onde estão. O imaginário dessa dominação absoluta é um tanto delirante, é uma recusa da realidade. Temos muitos outros agentes, incluindo polícias, empresários, políticos... Há uma disputa por esses mercados ilegais que envolve grupos realmente poderosos e não só gente pobre, negra e indígena que se arrisca a ser presa ou morta em troca de valores econômicos nem tão elevados”, diz.
Para ele, a melhor medida é tentar entender o problema e analisar as informações, um trabalho que não se direciona exclusivamente para a segurança pública, mas para outros setores da sociedade, secretarias e instituições, como a universidade.
“E não vai ser surpresa se um estudo como esse mostre que o problema não se reduz à segurança pública e que não pode ser tratado com violência policial e encarceramento. Ao contrário, o que vemos em qualquer lugar que decidiu enfrentar esse problema com realismo e pragmatismo é a tentativa de controle da atuação policial e a criação de políticas de desencarceramento. Tem quem diga que isso é "defender bandido" e fale para "levar para casa"... Eu me pergunto se alguém se sente mais seguro mandando alguém para a cadeia ou linchando até a morte”, completa Fabio.
Para ele, a justiça penal não quer saber das vítimas, nem de quem cometeu crimes, porque são em maioria pessoas pobres, negras e indígenas. “Simples assim. Suas vidas pouco importam, assim como não importam as vidas de suas famílias, de suas comunidades. Ou a gente inverte esse jogo ou vamos seguir sendo uma sociedade homicida”, encerra.