Mais de 30 dias após conquistar o direito ao regime de semiliberdade, uma mulher indígena da etnia Kokama, vítima de violência sexual durante o cumprimento de pena em uma delegacia no interior do Amazonas, segue impossibilitada de retomar a convivência com sua família.
De acordo com informações da Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM), ela permanece em um abrigo da capital, Manaus, à espera de um laudo da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), necessário para validar sua transferência para uma residência concedida pelo Estado.
Embora as chaves do imóvel assegurado por meio de acordo judicial já tenham sido entregues, a mudança para o novo endereço ainda depende de autorização da Funai, que, segundo a Defensoria, não apresentou até o momento qualquer plano para a execução da pena em regime de semiliberdade.
“Minha maior preocupação hoje é estar com minha irmã, que está doente, com minha mãe e meus filhos. Eles estão chegando, e eu continuo isolada”, afirmou a mulher. “Tenho uma casa, mas não posso ir para lá porque a Funai ainda não fez o que deveria fazer. Preciso de uma decisão definitiva para poder recomeçar minha vida com minha família”, acrescentou.
Urgência
Na quarta-feira (10/9), a mulher esteve na sede da DPE-AM e relatou sua urgência em reunir-se com a família, especialmente para cuidar da irmã, que enfrenta um câncer agressivo e se recupera de uma cirurgia invasiva. A irmã, de 27 anos, está alojada em um quarto de hotel no centro de Manaus, sem estrutura adequada e sem apoio institucional, segundo os defensores públicos.
Além da irmã, a indígena aguarda a chegada da mãe, do padrasto e dos dois filhos, um adolescente de 13 anos e outro de quase três, que deixaram Santo Antônio do Içá e devem chegar à capital nesta sexta-feira (12/9). Parte dos custos da viagem foi coberta com recursos pessoais do defensor público Roger Moreira, diante da ausência de suporte dos órgãos responsáveis.
“A decisão judicial que concedeu a semiliberdade, na prática, tem sido utilizada contra ela”, avalia o defensor público Theo Costa, do Núcleo de Atendimento Prisional da DPE-AM. Segundo ele, a ausência de planejamento prévio por parte da Justiça e da Funai criou um “vácuo jurídico” que inviabiliza o cumprimento efetivo do regime concedido.
Descumprimento da medida
A Defensoria alega que, embora a Justiça tenha determinado que a Funai acompanhasse o caso, não houve mobilização do órgão para garantir as condições mínimas de cumprimento da medida. “Quem tem dado suporte a ela, hoje, é a Secretaria de Justiça do Amazonas, o que não deveria acontecer”, afirma Costa.
Além disso, a Defensoria já havia alertado o Ministério dos Direitos Humanos e a própria Funai sobre ameaças sofridas pelos familiares da indígena no município de origem. Segundo relatos, não houve deslocamento de representantes da Funai à região para verificar a situação, nem ações concretas para assegurar a integridade da família.
Caso envolve graves violações de direitos humanos
A indígena de 29 anos foi presa em novembro de 2022, após procurar a delegacia de Santo Antônio do Içá para denunciar uma situação de violência doméstica. Sem audiência de custódia e sem comunicação à Defensoria Pública, foi condenada a 16 anos de prisão por crime hediondo.
Durante os nove meses em que permaneceu custodiada na 53ª Delegacia Interativa de Polícia, sofreu abusos físicos e sexuais cometidos por policiais militares e um guarda municipal, segundo denúncias do Ministério Público do Amazonas (MP-AM). Perícias comprovaram vestígios de violência e o caso resultou em denúncias contra seis agentes de segurança.
A indígena também foi submetida a trabalho forçado em condições degradantes e permaneceu com o filho recém-nascido em uma cela mista, o que contribuiu para o agravamento de seu estado físico e emocional. Atualmente, ela enfrenta sequelas psicológicas e físicas, incluindo diagnóstico de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).

A transferência para Manaus só foi autorizada após quase 10 meses de pedidos reiterados da Defensoria. Desde então, a DPE-AM busca garantir a regularização do regime de semiliberdade, já que a mulher atende aos requisitos previstos no Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973).
Cenário de omissões e atrasos
Na avaliação da DPE-AM, o caso evidencia uma sucessão de falhas institucionais, tanto do Judiciário quanto de órgãos federais. Para o defensor Theo Costa, a situação atual representa uma nova forma de violação institucional.
“A omissão de uma decisão judicial pode causar impactos em toda uma família. Estamos falando de uma mulher, indígena, mãe de dois filhos, com uma irmã gravemente doente e uma mãe com sequelas de AVC. São pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, que não estão recebendo o apoio que deveriam”, afirma.
Roger Moreira, defensor da área de Direitos Humanos da DPE-AM, reforça que a situação exige urgência e sensibilidade. “Estamos falando de uma mulher que foi vítima de violência brutal, que teve um bebê tirado de seu convívio, e que agora precisa, minimamente, estar com a família para reconstruir sua vida. O que está impedindo isso é apenas a burocracia e a omissão dos responsáveis.”
A Defensoria aguarda uma decisão do juízo da Vara de Execuções Penais que autorize a transferência da indígena para a residência disponibilizada pelo Estado. Enquanto isso, a mulher permanece em situação de incerteza, dependendo de apoio informal para suprir necessidades básicas da família.