O comércio de mercúrio metálico em plataformas digitais tornou-se um dos principais alvos do Ministério Público Federal (MPF) na luta contra o garimpo ilegal na Amazônia. Para isso, o órgão lançou o projeto ‘Rede Sem Mercúrio’, em fevereiro de 2024, resultando na remoção de milhares de anúncios ilegais, na formalização de acordos com grandes empresas de e-commerce e na revisão de políticas de plataformas como Mercado Livre, OLX, Facebook, Instagram, YouTube, Alibaba.com e B2Brazil.
A iniciativa nasceu a partir de investigações conduzidas pelo 2º Ofício Socioambiental da Amazônia Ocidental, que identificou um expressivo volume de anúncios de mercúrio líquido voltados à atividade garimpeira ilegal nos estados do Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia. O MPF apurou que o produto, em sua maioria contrabandeado da China, é comercializado por meios digitais e destinado a regiões com alta incidência de mineração clandestina.
Impactos ambientais e sociais
Dados do Projeto MapBiomas apontam que, em 2022, mais de 263 mil hectares foram ocupados por garimpos no Brasil, 92% deles na Amazônia. Destes, 77% estão próximos a corpos d’água, elevando o risco de contaminação por mercúrio. A substância é altamente tóxica, capaz de causar danos irreversíveis à saúde humana, especialmente ao sistema neurológico, e comprometer a biodiversidade aquática.
Estudos do MPF revelam níveis alarmantes de mercúrio na água, no solo e em peixes da região, afetando comunidades indígenas e ribeirinhas, com impactos que extrapolam as áreas diretamente atingidas pela mineração ilegal.
Ações judiciais e acordos com plataformas
Como resposta, o MPF firmou Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) com diversas plataformas digitais para proibir a veiculação de anúncios relacionados ao comércio ilegal de mercúrio. Entre as medidas adotadas estão:
- uso de inteligência artificial para identificar anúncios suspeitos;
- prazos específicos para remoção de conteúdo;
- criação de canais de denúncia.
As empresas também se comprometeram a acompanhar e revisar suas políticas internas.
Confira as principais medidas adotadas:
- Mercado Livre e OLX firmaram TACs com vigência de três anos e removeram todos os anúncios de mercúrio.
- Facebook e Instagram acataram integralmente a recomendação do MPF; os marketplaces da rede social estavam sendo usados para abastecimento de garimpos ilegais.
- Alibaba.com, B2Brazil e YouTube/Google Brasil também adotaram medidas de remoção de conteúdo e controle preventivo.
- Outras plataformas internacionais, como Made-in-China e Global Sources, seguiram as recomendações e eliminaram anúncios ativos.
Além da esfera cível, o projeto impulsionou a abertura de investigações criminais contra usuários e vendedores nas plataformas, com pedidos de busca, apreensão e quebra de sigilo autorizados pela Justiça.
Pressão legislativa e mudanças regulatórias
O MPF também vem pressionando por mudanças regulatórias. Recomendou ao Ibama a revisão da Instrução Normativa nº 26/2024, que ainda permite, com exceções, o uso de mercúrio por pessoas físicas licenciadas. Para o MPF, a proibição deve ser total, independente da licença.
No Amazonas, leis estaduais que permitiam o uso restrito do mercúrio foram revogadas após recomendação do órgão, em consonância com a Convenção de Minamata, tratado internacional do qual o Brasil é signatário desde 2013, que busca eliminar gradualmente o uso de mercúrio em atividades extrativistas.
Além disso, o MPF recomendou à Agência Nacional de Mineração (ANM) e a órgãos ambientais de estados da Amazônia que anulem licenças ambientais concedidas sem critérios técnicos claros, especialmente aquelas que não exigem especificação da técnica de beneficiamento do ouro. O uso de mercúrio sem autorização do Ibama deve, segundo o órgão, ser motivo de nulidade da licença.
Prejuízos bilionários ao meio ambiente
O setor de perícia do MPF desenvolveu uma fórmula para mensurar os danos causados pela mineração ilegal: cada quilo de ouro extraído de forma clandestina na Amazônia gera, no mínimo, R$ 1,7 milhão em prejuízos ambientais. Em casos mais graves, o valor pode chegar a R$ 3 milhões, considerando os impactos e o tempo estimado (42 anos) para a recuperação das áreas degradadas.
Modelo replicável
Segundo o procurador da República André Porreca, responsável pelo projeto, a experiência do ‘Rede Sem Mercúrio’ pode servir de modelo para enfrentar outras práticas ilegais no ambiente digital, como o tráfico de animais silvestres e a venda de medicamentos proibidos.
“A atuação do MPF combina instrumentos cíveis, extrajudiciais e penais para demonstrar que o ambiente virtual não é terra de ninguém. É uma resposta do Estado brasileiro à altura dos desafios ambientais globais”, afirma Porreca.